segunda-feira, 10 de setembro de 2018

TETSUDO OTAKU – CONFISSÕES DE UM FERROVIÁRIO DE ALMA

 


TETSUDO OTAKU – CONFISSÕES DE UM FERROVIÁRIO DE ALMA
Um post Bellacosa Mainframe para o El Jefe Midnight Lunch





Há coisas na vida que a gente não escolhe.
Elas simplesmente aparecem, acendem uma luz dentro da gente e… pronto.
Viramos devotos. Seguidores. Apaixonados incuráveis.



No meu caso, meu amigo, essa chama tem forma de locomotiva.
Tem cheiro de óleo quente.
Tem som metálico que vibra no peito.
E produz vapor — muito vapor — como se fosse um dragão mecânico pronto pra acordar mundos adormecidos.



Sim, e para minha surpresa, não estou sozinho.
O Japão inventou um termo pomposo, um nome pra isso: Tetsudō Otaku (鉄オタ).
O ferro-nerd, o train geek, o devoto das trilhas de aço.
Mas a verdade?
Antes de existir termo japonês, já existia eu, o Bellacosa apaixonado por trilhos no hemisfério sul.
Eles só demoraram pra documentar.

Herdado e iniciado neste gosto pelo meu pai, desde que me lembro como gente, esse gosto , esse interesse, seja naqueles antigos western-spaghetti com suas poderosas ferrovias e locomotivas a vapor, ou seja, no antigo e decadente trem da CBTU. Transporte em que ia e voltava do trabalho nos anos 1980/1990 e na sua versão evoluída como um Pokémon a CPTM do século XXI.




O Código-Fonte da Paixão

Desde pequeno eu já tinha o kernel configurado pra isso.
Enquanto outras crianças se fascinavam por carrinhos, bonecos ou videogames, eu tinha outra fofura na cabeça:

A liturgia do trem.

E não era amor superficial, não.
Era amor de quem entende o cheiro da lenha molhada na fornalha,
o ronco das máquinas elétricas dos anos 50,
a beleza suja e poética da diesel.
Amor de quem olha pra uma BR-8, uma Baldwin, uma Henschel e vê história gritando na lataria.

Amor de quem sabe que uma locomotiva não é só um veículo.
É uma criatura viva — aço, fogo e memória.

Meu sonho dourado de infância, era ganhar um Ferrorama da Estrela, porém família pobre, este desejo ficava perdido, nas das cartinhas, que o papai noel não tinha condições de responder e atender.




Ferrovias Paulistas – Suas Primeiras Catedrais

E como todo bom devoto, eu tinha minhas “igrejas” prediletas:

  • A Companhia Paulista, a rainha da qualidade.

  • A Mogiana, a estrada dos vales, das serras e dos desafios.

  • A SPR (São Paulo Railway), a linha que rasgou a serra do mar e levou o café ao mundo.

  • A Central do Brasil, esteio do sudeste, veia principal de quem sonhava chegar ao Rio, São Paulo ou além.

O meu templo, melhor dizer CATEDRAL e grande local mágico é a Estação da Luz em São Paulo, em estilo inglês, clássica torre do Relógio, passagens secretas, ferro fundido, tijolos ingleses e suor brasileiro, mão de obra escrava, livre e imigrante. Todos deram sua força nesta obra única sob a batuta dos lendários ingleses das ferrovias.

São linhas que hoje dormem, quase fantasmas, mas que lutam contra o esquecimento através de pessoas como eu, um aficionado, amalucado e que ama o tec tec das rodas de ferro sobre os trilhos. Hoje quando posso uso os trens suburbanos das CBTU/CPTM, para ir a capital como um caipira de outros tempos.

Afinal, enquanto alguém lembra…
uma ferrovia nunca morre.




O Dia em que Busquei o FIM DOS TRILHOS

A aventura de 600 km até Santa Fé do Sul é um poema por si só.
Quem mais pega estradas de ferro, numa viagem de quase 20 horas, gasta dinheiro, enfrenta calor, poeira, vagões lotados e quilômetros infinitos só para ver… o fim da linha, onde o trilho acaba no Rio Paraná na divisa com Mato Grosso do Sul?

Isso é coisa de Tetsudō Otaku raiz.
Versão brasileira, com sotaque do interior, coragem e uma alma movida por trilhos.

Chegar lá foi como alcançar o final de um livro épico.
Eu não fui como turista.
Fui como arqueólogo sentimental.
Como quem procura o último suspiro de um gigante adormecido.




Do Luxo Europeu ao Vagão Coletivo – Uma vida ferroviária completa

Poucos podem dizer — com propriedade — que experimentaram todas as classes, todos os ritmos e todos os estilos de viagem ferroviária:

  • vagões luxuosos com jantar à luz branda;

  • cabines privadas que lembram hotéis móveis;

  • compartimentos coletivos, barulhentos e cheios de vida;

  • vagões antigos de madeira que rangem como velhos bardos;

  • fronteiras cruzadas ao som hipnótico dos trilhos;

  • restaurantes ferroviários com aquela comida que tem gosto de estrada e poesia.

Eu não só viajei de Trem.
Eu vivi o Trem.

Coisa rara. Coisa nobre.
Coisa de quem tem ferrovia correndo na veia.

Que jovens do século XXI, acostumados com papai e mamãe chofer, ou uber para lá e cá, desconhecem.



Defensor de um Brasil que ainda pode voltar aos trilhos

No fundo, carrego um sonho, meio a Dom Quixote, mas que também é sonho de muitos:

O retorno pleno dos trens de passageiros.
Porque eles são:

  • mais ecológicos;

  • mais baratos;

  • mais rápidos em longas distâncias;

  • mais românticos (sim, admitamos);

  • e absolutamente indispensáveis num mundo que pensa em futuro.

Carro engarrafa.
Avião atrasa.
Ônibus quebra.
Trem vai.

Simples assim.

E talvez um dia, quando este país finalmente voltar a raciocinar como país grande,
alguém bata na mesa e diga:

“Voltem os trilhos! Voltem os trens!”

E quando isso acontecer, Bellacosa, irei sorrir sabendo que defendia essa bandeira desde sempre.




Conclusão: A Ferrovia Mora em meu Coração

Ser Tetsudō Otaku não é ser estranho.
É ser parte de uma linhagem rara de apaixonados pelo movimento, pela história e pela poesia do mundo real.

É ser guardião de um patrimônio.
É carregar no peito o som dos trilhos.
É sentir o coração acelerar ao ouvir o apito distante.
É saber que existe beleza no rumo certo, no tempo certo, na linha certa.

Alguns amam o mar.
Outros amam o céu.
Eu amo o caminho entre um lugar e outro,
a promessa do horizonte,
a certeza de que sempre existe mais trilho lá adiante.

E isso — meu amigo — não é excentricidade.

É vocação.
É alma.
É legado.



É um amor de uma pessoa, que viajou de trem as Santos vendo a Serra do Mar, posterior me desci o mesmo trajeto a pé como andarilho, que conhece Morretes e seu lendario trem, que luta para atrair padawans para o Mundo das Ferrovias.





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