sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O PODER DE UMA PINTURA

 


O PODER DE UMA PINTURA
Crônica ao estilo Bellacosa Mainframe
Para o El Jefe Midnight Lunch


Existem casas que não são casas.
São repositórios de memória, versões ancestrais do nosso data lake afetivo.
E a casa dos seus bisavós Paco e Isabel — o Francisco e a eterna vó Bel — era exatamente isso:
um sistema vivo, cheio de charme, cheiro, sons e pequenos tesouros espalhados como easter eggs para qualquer criança curiosa.

Mas havia ali um elemento que ultrapassava o simples conceito de “decoração”.
Uma peça que fazia load direto na alma de todo bisneto que passava pelo corredor.

Uma pintura.
Um mural.

E não qualquer mural.




O Banco de Ônibus e o Laboratório do Pequeno Doutor

Antes de chegar ao mural, era preciso atravessar cenários icônicos do universo Bellacosa.

Na área, um velho banco de ônibus — presente do seu pai aos bisavós — havia sido promovido do transporte coletivo ao trono afetivo.

Era nele que as crianças sentavam para conversar, brincar, imaginar, disputar espaço…
Uma espécie de console central da infantaria da família.

Seguindo um corredor lateral, que saia do lado de uma mureta daquelas com piso cerâmico e coluninhas, ao lado um portão de ferro que guiava até o fundo do quintal onde ficava o quartinho externo, cheio de ferramentas, sucatas, parafusos e relíquias mecânicas.
Ali nascia o Pequeno Doutor Vagner, cientista-mirim, desmontador compulsivo, capaz de abrir um rádio com a mesma determinação de um engenheiro do CICS tentando entender um ABEND 0C7.

Havia ainda o canteiro da horta, guardado pelo lendário jaboti, um Highlander, sobrevivente de guerras, gerações e intempéries — provavelmente imortal, silencioso e sábio como as máquinas Z da IBM.

E, claro, a garagem na frente da casa coberta: o playground oficial de dias de chuva, onde as aventuras ganhavam eco, velocidade e imaginação.

Mas nada — absolutamente nada — se comparava ao que havia na varanda.




A PINTURA QUE ABRIA PORTAIS

Na parede, pintado por um amigo da família, havia um mural que poderia, tranquilamente, ter sido catalogado pela UNESCO como Patrimônio Imaterial da Infância Brasileira.

Um pôr do sol magnífico.
Quase dourado, quase mágico.
Aquela luz que não existe mais, que só os anos 70 sabiam produzir.

E nele, caminhando para a esquerda, um surfista.
Magro, forte, despreocupado.
Segurando uma prancha enorme.
Rumo ao infinito.

As crianças da família paravam diante daquela pintura como quem para diante de uma tela de login de um universo paralelo ou mesmo sentadas no banco de ônibus, olhavam para ela.

Ali, cada bisneto se imaginava o surfista:

  • correndo pela areia;

  • enfrentando ondas gigantes;

  • vivendo aventuras tropicais totalmente incompatíveis com a vida urbana da Mooca ou de Taubaté.

O mural era mais do que tinta.
Era um motor gráfico da imaginação.
Um gateway afetivo que alimentava sonhos, coragem e fantasia.

Era ali que o futuro adulto começava a ser desenhado — sem que ninguém percebesse.




Os Quitutes, os Vidrinhos e o Arroz com Ovo

E enquanto a arte nos transportava, a casa nos ancorava.

Tia Maria servia bolinhos de chuva tão divinos que mereciam IPL especial só pra carregar o cheiro.
Os vidrinhos vazios de remédio viravam frascos de laboratório dos pequenos cientistas.
E o arroz com ovo frito mole — aquele clássico absoluto — possuía algum tipo de opcode sagrado que registrava memória afetiva até o fim da vida.

Sem falar nos iogurtes caseiros, aqueles feitos com bacilos vivos, guardados em potes reciclados da geladeira, cuidadosamente produzidos como se fossem uma batch job culinária passada de geração a geração.

Era amor.
Simples.
Caseiro.
Imenso.
Do tipo que dura décadas, como as máquinas Z, como as histórias bem contadas, como os avós que moldam nosso código-fonte sem dizer uma palavra.


O Poder de uma Pintura

Hoje, olhando para trás, fica claro:

Aquele mural não era só um mural.
Era um servidor emocional.

Cada criança que parava ali fazia um login diferente:
um queria ser surfista, outro guerreiro, outro aventureiro.
Mas todos, absolutamente todos, saíam da varanda com o coração mais leve.

Porque o poder da arte é esse:
ela cria mundos dentro da gente.
E quando isso acontece na casa de avós amorosos, acompanhada de café, cheiro de chuva e iogurte caseiro…
o mundo inteiro fica melhor.

Aquela pintura não era apenas tinta na parede.
Era um lembrete silencioso de que a infância foi boa,
foi rica,
foi cheia de brilho,
de sonhos
e de amor.

E esse tipo de lembrança — ah, meu amigo —
é do tipo que nem o tempo, nem a vida, nem os tombos…
conseguem apagar.

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