🎺 A Música do Cambuí
Por Vagner Bellacosa Mainframe
Em meio ao medo, havia som.
Não o som das panelas — que soava como protesto —
mas o som da beleza tentando sobreviver.
No Cambuí, em Campinas, músicos anônimos começaram a sair às ruas, mantendo o distanciamento,
andando devagar pelas calçadas vazias, tocando saxofones, violinos, flautas e tambores.
As notas ecoavam entre os prédios, subindo pelas varandas,
encontrando rostos cansados e olhos marejados.
Era um gesto simples — e talvez por isso, tão comovente.
As pessoas, isoladas em seus apartamentos, aplaudiam das janelas,
outras choravam, outras acompanhavam batendo palmas no ritmo.
Por um instante, a rua voltou a ter alma.
O vírus estava por toda parte — invisível e letal.
Os telejornais mostravam hospitais de campanha, leitos improvisados,
médicos exaustos, corpos enrolados em lençóis,
e números que pareciam não ter fim.
Era como assistir a uma guerra sem som,
até que esses músicos decidiram devolver o som ao mundo.
Naquele tempo, a música era uma prece.
E o Cambuí virou uma pequena catedral a céu aberto,
onde cada nota dizia o que as palavras não podiam:
“Estamos com medo, mas ainda estamos vivos.”
A cena era surreal: ruas vazias, janelas iluminadas,
o som flutuando sobre o asfalto molhado,
e o coração, por alguns minutos, esquecendo as estatísticas.
Talvez fosse isso o que Deus esperava de nós —
não heroísmo, nem fé cega,
mas a capacidade de ainda se comover.
Lembro-me da história que minha bisavó Isabel contava —
a gripe espanhola, os corpos enrolados em lençóis,
o homem da carrocinha puxada a burro, recolhendo os mortos pelas ruas.
Cem anos depois, o mesmo medo, a mesma dor, o mesmo silêncio.
Mudaram as roupas, os carros, os prédios —
mas o susto diante da morte continua igual.
E no entanto, havia música.
E enquanto houvesse música,
a humanidade ainda tinha chance.
