🎥 A Primeira Sessão de Cinema — Crônica Bellacosa Mainframe para o El Jefe Midnight Lunch
Pirassununga, 1983.
A cidade ainda cheirava a eucalipto, poeira e garapa.
O rádio AM chiava notícias, a ditadura militar respirava seus últimos fôlegos, mas para um garoto de 9 anos, nada disso importava. O mundo era simples, grande, cheio de segredos… e naquela tarde ia ganhar um novo brilho.
Porque — inspirado pela minha irmã Vivi, guardiã das boas histórias — eu vou falar daquela que ninguém esquece:
A primeira ida ao cinema.
(A verdadeira iniciação.
A que fica tatuada no disco rígido da alma.)
🎞️ O Cinema de 700 Lugares
Na Pirassununga dos anos 80, o cinema era praticamente um templo.
Havia só dois na cidade, mas bastava.
O Cine Jossandra era enorme para um garoto de 9 anos, seus mais de 700 lugares, a enorme tela branco, a sala do projetista, o requinte, o encanto, o luxo e o glamour, que enchiam os olhos de um garoto em sua primeira vez.
Poltronas de couro ainda com cheiro forte.
Carpete vermelho escuro que parecia o corredor de um teatro de capital.
A bombonière no hall com bala de hortelã, drops de anis, chicletes Ping-Pong, pipocas estourando em tacho de ferro.
E no meio desse cenário cinematográfico digno de uma abertura da Rede Globo de 1983…
estava ele.
🔦 Bene, o lanterninha que desafiou o mundo
Bene era uma lenda viva.
Um personagem que parecia saído de um filme de Fellini, mas colocado no interior paulista durante o governo Figueiredo.
Num tempo de conservadorismo rígido — e medo, e silêncio — Bene era livre.
Homem afeminado, carismático, espalhafatoso, amado por quase todo mundo.
A cidade o conhecia, ria com ele, contava histórias dele.
A porta-bandeira de uma das escolas de Samba da cidade.
E Bene trabalhava em mil coisas: ajudante aqui, vendedor ali, faz-tudo acolá…
Mas seu papel mais luminoso — literalmente — era o de lanterninha do cinema.
Uniforme vermelho impecável.
Chapéu alinhado.
Meias pretas.
Sapatos brilhando.
E a lanterna na mão, que parecia iluminar muito mais que o caminho até a poltrona:
iluminava coragem.
Num Brasil que ainda tinha medo de ser diferente, Bene era simplesmente Bene —
e isso já era revolucionário.
🎬 O Convite Mágico
Bene fez amizade com meus pais e frequentava nossa casa, adorava fotografia, amou as belas fotos que meu pai fez dele durante o desfile de carnaval. Em um desses papos que só adultos entendem, meus pais conversavam com ele.
E de repente Bene, com a naturalidade de quem abre portas para outros mundos, disse:
— Vai ter matinê para as crianças. Estreia dos Trapalhões na Serra Pelada. Tenho ingressos, vocês querem?
Querer?
Querer era pouco.
Ganhar ingresso para a estreia dos Trapalhões era equivalente, para um garoto, a receber uma key da NASA para pilotar o foguete da Challenger.
O sábado se tornou o dia mais esperado do ano.
🍭 Pipoquinha Especial do Bene
A sessão estava lotada.
Crianças rindo, gritando, correndo.
Pais tentando manter alguma dignidade.
Eu ali, pequeno, com o coração batendo mais que a bateria do hino dos Trapalhões. Vivi emocionada com o local e o pequeno Dandan, ainda era muito inocente para ter participação ativa no rolê.
O filme começou — Dedé sério, Mussum sacana, Zacarias anjo, Didi detonando.
E de tempos em tempos…
Bene aparecia no corredor.
Como um NPC lendário trazendo bônus inesperados:
Pipoca.
Bala.
Doce.
Um aceno.
Um sorriso.
É difícil explicar o quanto isso marcava.
Para mim, aquele lanterninha era parte do filme.
Era como se a magia da tela vazasse para a vida real.
🌟 A Primeira Vez — registrada no spool da memória
O cinema escuro.
A tela enorme.
Os Trapalhões brilhando.
O cheiro de pipoca.
A risada coletiva, aquela energia que só uma sala cheia de crianças consegue criar.
Tudo aquilo se juntou numa memória cristalizada —
um checkpoint eterno que nunca será sobrescrito.
E quando a sessão terminou, eu saí flutuando.
Porque naquele sábado, eu tinha vivido duas estreias:
A estreia dos Trapalhões…
e a minha estreia no cinema.
E como em toda boa história Bellacosa, havia um herói improvável iluminando os caminhos:
Bene — o lanterninha que acendeu, sem querer, a primeira faísca do meu amor por telas, histórias e mundos imaginários.
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