📜 Crônicas da Rua Ultrecht – Volume “Novo Horizonte”
Ao estilo Bellacosa Mainframe, para os leitores fiéis deste escriba desorganizado e feliz
Há memórias que chegam como dump de sistema: fragmentadas, desalinhadas, registros misturados, datas colidindo como timestamps descompassados num JES2 atolado.
Mas, no meio desse caos mental, há sempre um bloco consistente, um dataset íntegro: Novo Horizonte, interior de São Paulo.
Fim dos anos 1970, início dos anos 1980.
Antes da pré-escola, antes da alfabetização, antes do Dandan — ou depois, quem sabe. A cronologia é um JCL mal comentado. Mas a lembrança, essa sim, é vívida.
🌽 Novo Horizonte — O Parêntese da Infância
Aqueles meses (ou seria um ano?) em Novo Horizonte foram como um fork no meu sistema de vida.
Meu pai, fotógrafo, resolveu tentar sorte na cidade dos primos.
E ali reencontrei três figuras lendárias:
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Sidney
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Marcele
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Duzinho
Filhos de Eduardo e Cleuza, parentes do meu pai e operadores oficiais da oficina técnica da vida real, especializada em tratores, caminhonetes e utilitários rurais.
Era um mundo de graxa, ferro, escapamentos quentes, parafusos, barulho e cheiro de óleo queimado — um parque de diversões para qualquer criatura diabinha em formação.
🌭 O Hot Dog da Iluminação Química
Foi lá que eu vivi minha primeira epifania gastronômica.
Até então, na minha casa, “hot dog” era:
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pão
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salsicha
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molho de tomate caseiro
Delicioso, mas… doméstico.
Quase artesanal.
Então veio o evento.
A mordida.
A descoberta.
Hot dog com ketchup.
Meu Deus.
O choque cultural.
A explosão industrial.
O sabor químico, doce, artificial, processadíssimo — e absolutamente perfeito.
Era como sair de fita magnética e entrar no SSD.
Como trocar gloops de tinta por polímeros sintéticos de primeira geração.
Como sair de CP/M e descobrir mainframe z/OS.
Até hoje — até hoje — quando provo ketchup, uma pequena cena pós-créditos sobe na minha mente:
eu, pequenino, segurando um hot dog e pensando:
“o que é esse néctar das fábricas?”
⚠️ Epic Fail Nº 271 — A Piscina de Óleo Queimado
Mas nenhuma lembrança supera o grande mergulho.
Na oficina do Edu, havia um reservatório aberto no chão — um fosso pouco profundo onde se acumulava óleo queimado de lubrificação.
Preto.
Denso.
Pegajoso.
Cheiro forte.
Aquele tipo de resíduo que hoje teria uns 47 alertas ambientais e umas cinco multas da CETESB.
Eis que, num momento de inspiração duvidosa, Sidney, provavelmente com a inocência (ou malícia) típica dos primos mais velhos, comenta:
“Olha ali… a piscina!”
Eu, crédulo, aspirante a passarinho, criatura ainda sem firmware de autopreservação, pensei:
“Piscina = pular.”
E pulei.
Sim.
Eu pulei dentro do óleo.
🛢️ O Batismo Petrolífero
Subi do fosso como um personagem bugado de jogo 8-bit:
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inteiramente preto,
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grudento,
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escorrendo óleo,
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com a roupa condenada,
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e com a alma impregnada de hidrocarbonetos.
Minha mãe quase teve um AVC.
Meu pai não sabia se brigava ou fotografava.
E eu, no auge da inocência, estava mais curioso do que arrependido.
Hoje, quando vejo fotos de derramamento de crude no mar, aves cobertas de petróleo, tartarugas lutando para mexer a nadadeira…
me bate uma solidária pontada no peito.
Eu sei.
Eu sei o que é viver isso.
Sou praticamente um sobrevivente de derramamento ambiental, versão infantil.
🎞️ Novo Horizonte — O Episódio Perdido da Série
Essas memórias não têm ordem, não têm lógica, não seguem calendário.
São como blocks jogados pelo tempo, soltos na memória, prontos para serem reorganizados por algum futuro arqueólogo digital.
Mas elas existem.
Pulam do passado como aquele hot dog vermelho, aquele pulo no poço, aquele abraço da infância simples.