segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Crônica — Pilhas Caras, Brinquedos Offline e um Sonho Chamado Ferrorama




Crônica — Pilhas Caras, Brinquedos Offline e um Sonho Chamado Ferrorama

Para o Blog El Jefe Midnight Lunch — Edição Bellacosa Mainframe

A infância não é feita apenas de doces memórias — às vezes ela vem com senha de acesso restrito, versão demo, recurso limitado por orçamento e por boleto vencendo.
E no meu caso, os vilões não eram monstros nem fantasmas.
Eram pilhas.
Essas pequenas tiranas cilíndricas que decidiam quanto tempo um brinquedo podia existir.

Tínhamos uma vida de onda — ora maré alta, comida farta, risada solta; ora maré baixa, contas apertadas, criatividade para sobreviver.
Meu pai com a fotografia, minha mãe com salgados, manicure, bordados, o que aparecesse.
Quando a grana apertava, a família estendia a mão como ponte.
Nunca faltou amor.
Mas sobravam limites.

E é por isso que eu odiava brinquedos a pilha.


Não que eu não achasse incríveis.

Robôs que andavam, carrinhos que piscavam, fuscas que davam ré quando batiam na parede — aquilo era um trailer do futuro passando no cinema da sala.
Mas o ingresso era caro.
Pilhas custavam quase como ouro, ainda mais no late-game da ditadura, com a inflação mordendo o salário como um pitbull faminto.



Meus pais compravam um kit por mês.
Acabou? Acabou.
Só no próximo ciclo fiscal familiar.
E aí ficavam lá, meus brinquedos — parados, imóveis, como estátua greco-romana — esperando energia para viver.
Brincar com eles sem pilha era como tentar ouvir vinil sem agulha.

A solução científica-milenar? A geladeira.
Colocávamos as pilhas no gelo como se fossem soldados feridos na enfermaria.
E elas ressuscitavam por alguns minutos gloriosos.
Depois morriam novamente, dramaticamente, sem música de despedida.

Por isso, os reis do meu quartel não tinham pilha:
Fort Apache e soldados Gulliver.
Movidos a imaginação, sem consumo energético, 100% renovável.
Ali a batalha nunca acabava — era fusão nuclear de fantasia e chão de terra.
A infantaria marchava, o canhão disparava som com a boca, o cavalo corria como búfalo.
Era offline mode, mas com servidor dedicado na mente.

E havia um sonho.
Grandioso, inalcançável, quase mitológico:

O Ferrorama.


O trem elétrico da Estrela.
O Orient Express da infância brasileira.
A Torre Eiffel dos brinquedos.

Eu imaginava aquele trilho montado na sala, locomotiva fumegando, vagões brilhantes, estação lotada de passageiros que só existiam na minha cabeça.
Mas o preço era astronômico, coisa para filho de bancário ou de dentista do bairro.
Eu ficava com versões humildes, trenzinhos simples, plástico cru, motor fraco — mas rodavam sonhos.

Demorei anos para entender, mas aquilo me ensinou algo duro e valioso:

Quem sonha com o que não pode ter,
aprende a criar mundos com o que tem.

Hoje olho a prateleira, cheia de itens que eu jamais imaginei um dia possuir — alguns valem mais do que dois ou três Ferroramas dos anos 80.
E o menino de pilha gelada olha para tudo isso com um sorriso torto, meio vitorioso, meio nostálgico.

Porque a verdadeira bateria que movia minha infância não era alcalina —
era imaginação ilimitada com orçamento limitado.

E no fundo, é ela que me move até hoje.

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