🚲 Crônicas do Vaguinho — A Monareta Verde, uma phenix e a Liberdade
Ao estilo Bellacosa Mainframe, para o blog El Jefe Midnight Lunch
Alguns garotos ganham a liberdade com uma chave de casa.
Outros, quando fazem 18 anos.
Eu ganhei a minha em 1984, numa época dura, de crise do petróleo, inflação louca, ditadura se desfazendo e o Brasil andando com a sola do sapato.
Liberdade, pra mim, veio na forma de duas rodas remendadas. Um natal antecipado.
E essa é a saga da minha primeira bicicleta — a Monareta Verde que virou não apenas um veÃculo, mas um portal para o mundo.
🛠️ A Bicicleta Ferida e o Pacto dos Padrinhos
Meu tio Pedrinho tinha uma Monareta verde. Coisa linda. Até o dia em que ele, do alto de seu desastrismo épico, resolveu medir forças com um poste.
O poste venceu.
A bicicleta… nem tanto.
-
garfos dianteiros tortos
-
guidão em forma de “S” pós-acidente
-
pneus mortos
-
ferrugem florescendo
-
freios inexistentes
-
corrente que parecia cordão de pipa desgastada
Minha avó, furiosa, queria vender a “criatura assassina”.
Mas meu avô — sábio, sereno, estrategista digno de almirante do CICS — decretou:
“Vamos dar pro Vagner. Ele não tem bicicleta. Ele arruma.”
Um decreto imperial.
E assim começou minha epopeia.
Quando minha tia Miriam e o tio Osmar surgiram no Cecap com aquela relÃquia capenga, eu não ganhei apenas uma bicicleta. Ganhei um caminho.
🔧 Operação Ressurreição: Eu, Meu Pai e A Monareta ImpossÃvel
Era 1984.
Não tÃnhamos quase nada.
Mas tÃnhamos tempo, garra e a vontade do meu pai de me reconquistar depois dos dramas familiares do ano anterior.
Cada peça foi um capÃtulo:
-
lixar ferrugem com lixa de madeira
-
endireitar o guidão com técnica de “força bruta e esperança”
-
trocar o breque improvisando cabos
-
reapertar eixos como quem ajusta engrenagens de um mainframe
-
pintura remendada, mas feita com amor
-
garfos dianteiros alinhados com golpes suaves que mais pareciam reza
-
corrente trocada
-
pneus remendados com colinha branca, lixa fina e fé
Quando terminamos, quem olhava dizia:
“Nossa, compraram uma bike nova!”
Mas nós sabÃamos.
Era mais que nova: era renascida.
🚴 A Magrela Sem Nome — Minha Nave Espacial
Eu nunca dei nome pra ela.
E, ironicamente, isso a tornava mais especial.
Era simplesmente minha magrela.
Minha amiga.
Minha confidente.
Meu passaporte.
Com ela eu:
-
cruzava o Cecap como se fosse o Velho Oeste
-
ia ao mercado comprar pão e voltar com troco (sim, existia isso)
-
levava a Vivi e o Dandan para a escola
-
atravessava trilhos da Central do Brasil
-
pedalava até Tremembé
-
ia pra Pindamonhangaba sem Google Maps
-
me aventurava em Caçapava
-
tentar subir a serra rumo a Campos do Jordão (maluco desde cedo)
-
explorar os distritos rurais do Pinheirinho e Tataúba
Ir até a fábrica da Volkswagen Taubaté para ver meu tio Santiago saindo do serviço
-
aprendia a reparar pneus com garfo de cozinha, porque pobre é engenheiro nato
virar mecânico senhor em manutenção de bicicleta
-
fazia escambo de serviços na borracharia por um remendo a quente
pular rampas improvisadas,
tentar acompanhar o primo Marcelo em sua estilosa BMX numa pista de cross acidentada e com rampas.
-
levava tombos que viraram tatuagens naturais nas pernas
usar para travessuras censuráveis, tais como espionar as meninas do job, tomando banho de piscina e se bronzeando nuas em chácaras perdidas na velha estrada de Tremembé
Era meu carro, minha moto, meu skate, meu avião e meu boing 747.
🌅 A Liberdade Sobre Duas Rodas
A Monareta verde me deu algo que nenhuma outra coisa poderia dar naquele tempo:
Horizonte.
Num Brasil difÃcil, num lar remendado, num bairro simples, aquela bicicleta era:
-
a sensação do vento batendo no rosto
-
o barulho gostoso da corrente engatada
-
o cheiro da rua depois da chuva
-
a alegria de pedalar até o limite do sol
-
a certeza de que o mundo era maior que a sala da nossa casa
Todos temos uma primeira bicicleta.
A minha não era perfeita.
Mas era minha.
E, como tudo que nasce das mãos da gente, tinha mais alma do que qualquer bike de loja de shopping.
💚 EpÃlogo: A Monareta Virou História — E História Virou Afeto
Hoje, olhando pra trás, percebo:
Eu não ganhei uma bike.
Eu ganhei uma infância inteira.
A Monareta verde 1982 não existe mais.
Mas as cicatrizes nos joelhos, as viagens impossÃveis e as lembranças de mim e do meu pai lado a lado…
Ah, essas sobrevivem como se fossem cromadas.
Sem comentários:
Enviar um comentário