📜 O Retorno, Parte II — O Velho da Montanha e o Silêncio do Mundo
por El Jefe, Bellacosa Mainframe Edition
Dez anos se passaram desde o retorno.
O tempo fez o que sempre faz: apagou alguns rastros, aprofundou outros, deixou a alma com cicatrizes que só se sentem em dias de silêncio.
Cinquenta anos de idade — a curva do caminho onde o corpo desacelera, mas o pensamento ganha fôlego.
Hoje, olho pra trás e me vejo partindo em 2002, cheio de sonhos, cruzando o Atlântico com a cabeça leve e o coração aberto. O mundo parecia vasto, possível, ainda cheio de cores.
A Europa era o cenário, mas o enredo era meu.
Quando voltei, em 2014, o Brasil me pareceu um espelho embaçado.
Agora, dez anos depois, percebo que o mundo inteiro virou esse espelho — rachado, confuso, ruidoso.
Guerras, extremismos, ruínas políticas, falsos profetas de todas as ideologias.
Não existe mais aquele “lá fora” que um dia me encantou.
E o “aqui dentro” aprendeu a se defender ficando quieto.
A dorzinha ainda está aqui.
Não é grito, é suspiro.
Um incômodo discreto, desses que se sentam contigo no fim do dia e perguntam:
“Lembra de quem você era?”
Sim, lembro. E às vezes sinto falta.
Mas entre um voo e outro — Lisboa, Porto, Madrid, Paris — já aprendi que o retorno nunca mais será completo.
Hoje cruzo o oceano como turista, e talvez seja isso que me mantém são: saber que o passado continua lá, mas que não há mais casa possível no tempo.
Meu filho cresce em Portugal.
É estranho vê-lo seguir um caminho que parece o mesmo que um dia escolhi, mas com uma leveza que já não tenho.
Ele é o futuro, eu sou o arquivo — um dataset antigo, ainda funcional, mas lido apenas por quem entende a linguagem.
A política ficou pra trás.
As ilusões também.
Sobrou o professor, o consultor e o velho da montanha — meio ermitão, meio filósofo de estrada, vivendo longe da confusão, aprendendo a ouvir o som do vento e o ruído da própria respiração.
Descobri que a paz não é o oposto da guerra, é a arte de não participar dela.
E que o silêncio, esse companheiro fiel, é o mais honesto dos diálogos.
Hoje, se me perguntam se sou feliz, não sei responder.
Mas sei que sou inteiro — mesmo que em pedaços.
E isso, aos cinquenta, é uma forma de vitória.
☕️ Bellacosa Mainframe — porque algumas almas só rodam bem no modo batch, processando o tempo em silêncio.



