🛣️ A Estrada Para Cornélio Procópio
ou: a primeira grande expansão de fronteira do pequeno Bellacosa
(Crônica ao estilo Bellacosa Mainframe para o El Jefe Midnight Lunch)
A memória da infância é um spool interessante:
grava só o que quer, descarta o resto em purge, e ainda assim mantém os fragmentos mais poderosos, aqueles que, mesmo meio pixelados, carregam toda a emoção intacta.
E assim é a lembrança daquela viagem — a mais longa da minha pequena infância.
Não há certeza se foi carro da família ou caravana de carros de parentes, mas uma coisa é absoluta:
era aventura.
A maior aventura da minha vida até então.
🚗 A Estrada do Sul – Quando Viajar Era Descobrir o Mundo
Nos anos 70/80, viajar não era rotina.
Não era GPS, não era playlist, não era ar-condicionado digital.
Viajar era ato solene, quase rito de passagem.
As estradas tinham poucos carros, os caminhões eram gigantes mitológicos, e cada parada em posto de gasolina era uma expedição arqueológica:
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o cheiro de café fresco misturado com graxa,
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os mapas dobrados em painel,
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o “vamos esticar as pernas”,
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e o senso de estar entrando num mundo que ia muito além da Vila Rio Branco.
Eu era pequeno, mas nesse dia já sentia que estava atravessando não só o estado — estava atravessando minha própria infância.
O velho fusquinha vermelho, superaquecia e precisa arrefecer de tempos em tempos, às vezes parávamos a beira da estrada para apanhar frutas, ver ninhos de passarinho, olhar a carcaça de algum animal morto e limpar o para-brisa com a quantidade de insetos grudados.
🌱 O Norte do Paraná – Uma Fronteira Viva
O destino era Cornélio Procópio, a terra onde sua mãe nasceu, a terra que moldou a “menina da roça”, a futura Dona Mercedes que viria a ser o eixo central da família Bellacosa. A terra roxa e conhecer Jaguapitã, Londrina, Maringa e outras cidades pelo caminho.
E aquele norte do Paraná… ah, aquilo era outro planeta.
Era uma região ainda jovem, recém desbravada, marcada por:
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madeireiras gigantes com cheiro de pinho e serragem no ar,
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cidades com não mais que duas décadas de vida,
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ruas largas e poeirentas,
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um futuro em construção.
Ali, tudo parecia temporário e definitivo ao mesmo tempo — um faroeste brasileiro moldado em madeira, café, suor e esperança.
🏡 As Casas de Madeira — Uma Revelação Americana
Mas o grande choque da viagem estava na arquitetura.
Para quem vinha da dura e concreta São Paulo, ver casas de madeira estilo americano, com:
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lareiras,
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chaminés,
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telhados inclinados,
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varandas de tábuas,
era como entrar num episódio vivo de Bonanza ou A Casa da Pradaria.
De repente tudo fez sentido:
quando minha mãe ensinava vocês a desenhar casinhas e insistia em colocar chaminés, achávamos aquilo estranho, fora da realidade paulistana.
Mas ali, naquele Paraná de clima frio e casas quentinhas, entendi:
ela desenhava a própria infância.
👪 A Grande Família – Tio-Avô Bau e o Clã Expandido
E então veio a avalanche de parentes.
Primos que surgiam como NPCs novos na história.
Gente que ria como sua mãe, gente que gesticulava como ela, gente que olhava como ela olhava.
O tio-avô Bau e sua grande família — aquela unidade expansiva que abre a porta, puxa cadeira, serve café, conta história e faz você se sentir parte de algo maior.
Era, para você criança, como descobrir uma expansão de mapa num jogo:
de repente o mundo cresceu, ganhou novas áreas, novas histórias, novas missões.
🧠 A Memória Falha — Mas o Sentimento Permanece
A mente adulta tenta puxar mais detalhes, mas não consegue.
Os pixels se perderam, o tempo deu purge, o spool girou.
Mas o essencial ficou:
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a sensação de estrada infinita,
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o impacto das casas de madeira,
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o fascínio pelo sul,
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a descoberta de um ramo inteiro da família,
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e o primeiro contato real com a infância de sua mãe.
Essa viagem foi, sem dúvida, uma das primeiras grandes fronteiras que cruzei na vida.
📜 Epílogo Bellacosa Mainframe
E assim, sem perceber, o menino que partiu de São Paulo voltou maior.
Não em idade.
Mas em mundo.
Aquele dia não foi só a primeira viagem longa.
Foi a primeira vez que viu que:
Sua mãe tinha um passado.
Sua família tinha raízes.
E você tinha um mapa muito maior do que imaginava.
Um mapa que começava em São Paulo, descia por estradas vazias e terminava…
no coração simples de Cornélio Procópio —
e no começo da história de Dona Mercedes.