📜 Luigi Bellacosa – O Gigante da Mooca
A lenda napolitana que virou bairro, virou história e virou mito
Todo bairro tem seus personagens.
Alguns são fofocas, alguns são sombras…
E outros, como o bisavô Luigi, são tão enormes que nem passam na porta da História:
entram derrubando o batente, sorrindo, com aquela força gentil que só os verdadeiros gigantes têm.
Eu o conheci quando já estava no ocaso — mas, mesmo assim, era maior que a vida.
👣 1. O Homem que a Mooca não esquecia
Imagine um homem com quase dois metros, forte como estivador do Porto de Nápoles, mas com olhar azul de mar tranquilo e cabelo castanho claro de mocinho de cinema mudo.
Luigi fez de tudo:
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jogador profissional de futebol,
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político improvisado,
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representante comunitário,
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operário de fábrica,
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pedreiro,
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e até delegado adjunto, daqueles que entram e resolvem sem precisar de BO, bastava um olhar.
Era bom de briga, fã de luta livre e, ao mesmo tempo, amigo dos animais, especialmente cachorros abandonados — o que lhe rendeu o apelido carinhoso de dogueiro da Mooca.
Homem de muitos amores e muitas histórias, um tipo que hoje chamariam de “lendário”, mas na época chamavam só de Luigi.
Tanta gente o amava quanto o temia.
E isso diz muito sobre um homem.
Mesmo em 1993, dez anos após sua morte, ainda se falava dele nas calçadas da Rua Javari, nas padarias, nos botecos, nas rodinhas de dominó.
Histórias verdadeiras e exageros folclóricos se misturavam, como boa tradição mooquense exige.
🩸 2. Um gigante de carne, osso, cicatriz e ausência
Quando o conheci, era criança — e para mim ele era um personagem de fábula.
Tinha uma cicatriz no rosto, resultado das caçadas nos tempos brutos;
e faltava-lhe uma orelha, levada por um tumor que enfrentou sem drama, como quem arruma uma infiltração na parede.
Falava num dialeto próprio:
meio italiano napolitano, meio português da Mooca, meio carcamano.
Uma língua tão única quanto ele.
Era bonachão, brincalhão e poderoso como um tronco velho de árvore centenária.
E, no entanto, havia em seus gestos uma doçura que só os grandes conhecem — porque só quem é gigante sabe o peso de machucar alguém sem querer.
Gostava de falar do seu tempo de futebolista, defendendo a camiseta grená, dos antigos jogos, da camisa suada e o orgulho de fazer parte da esquadra. O Juventus da Mooca era o seu coração.
👨👦 3. O dia em que vi meu pai pequeno
Meu pai sempre foi gigante para mim.
Mas, ao se aproximar do avô Luigi, ele diminuía — não em respeito, mas em amor.
Ele olhava o velho patriarca com um brilho que eu nunca vi em mais ninguém.
Um menino reverenciando seu mito.
Até hoje acho que meu pai amava mais o avô do que ao próprio pai, e não há nada de errado nisso:
alguns vínculos são simplesmente mais fortes, mais formadores, mais eternos.
Quando Luigi morreu em 1982, vi um pedaço do meu pai desabar.
E, meses antes, já havíamos perdido outro gigante:
tio-bisavô Arthur, o primeiro “Dudu” do Palmeiras lá pelos anos 1930.
Dois irmãos napolitanos que vieram ao Brasil, plantaram raízes na Mooca e viraram mitologia de boteco, arquibancada e vizinhança.
A dupla Luigi & Dudu era tão grande que parecia tirada de um romance épico italiano.
Quando um se foi, o outro não demorou.
E o bairro inteiro chorou.
🏘️ 4. A Mooca dos Gigantes
A Mooca do início do século XX não era bairro:
era um território de imigrantes cansados, sonhadores, briguentos e apaixonados.
Um mundo onde cada esquina tinha um pedaço de Europa, América e fantasia.
Para mim, criança de 8 anos vendo tudo de baixo, pareceram heróis mitológicos:
homens fortes como os de Homero, mas com corações enormes como histórias de família costumam ter.
E hoje percebo:
os Bellacosa daquela época eram parte da paisagem, como os trilhos, os armazéns, o cheiro de pão fresco e o grito "Ô loco, meu!" ecoando no bairro.
Eles eram os gigantes que carregaram a Mooca nas costas.
E eu cresci com a sorte de ouvir suas histórias de dentro, não da calçada.
📚 5. Por que lembramos dos gigantes?
Porque gigantes não são feitos de altura.
São feitos de:
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impacto,
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amor,
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personalidade,
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exagero,
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coragem,
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defeitos épicos,
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e uma presença tão forte que 40 anos depois ainda deixa sombra.
Luigi foi tudo isso.
Um capítulo vivo da Mooca.
Um homem tão grande que, mesmo velhinho, mesmo doente, mesmo com uma orelha só…
ainda assim ocupava o ambiente inteiro, o respeito inteiro — e o imaginário inteiro de quem o conheceu.
🖋️ Epílogo: o menino que viu gigantes
Hoje, ao recordar, entendo que minha memória não exagera:
meu bisavô era mesmo maior do que eu podia captar.
E talvez seja isso que faz certas famílias serem especiais:
não o sangue, não o sobrenome, mas as histórias que atravessam gerações e continuam vivas, mesmo quando quem viveu já virou saudade.
A Mooca teve muitos personagens.
Mas o Gigante Luigi Bellacosa continua caminhando por lá, invisível,
presente em cada lembrança,
em cada conto exagerado,
em cada sorriso que começa com um “você lembra do Luigi?”.
E é assim que os gigantes permanecem:
não nas fotos, não nos documentos —
mas na memória dos que tiveram o privilégio de viver à sua sombra.






