📜 Quando o Guerreiro Chorou
Uma memória Bellacosa Mainframe — raw, pesada, humana, compilada direto do spool da alma
Existem dias que o tempo não apaga. Alguns são de festa, outros são fotografia em sépia, mas certos carregam o metal frio e silêncio — são dias que viram tatuagem na alma.
E eu tenho um desses. Comentei em outros postes, mas é algo maior, que grita no fundo da mente, naquele longinquou ano de 1982, a maioria das testemunhas desse evento, partiram, o Grande Guerreiro Luigi e somente um fantasma do passado.
Mas para o Vaguinho, pequenino, magrinho, oni em evolução. Aquele dia foi o dia em que viu meu pai chorar.
A morte do Velho Luigi — lenda da Mooca, homem controverso, uns amando, outros odiando. Um gigante loiro de olhos azuis faiscante e de peito aberto, briguento, mulherengo, bêbado, sobrevivente, mito de calçada e roleta de botequim — foi o bug fatal na memória dos Bellacosa. Luigi não era só ancestral. Era o tótem urbano, folclore de rua com cheiro de cerveja, caça e pólvora. De uma Mooca que não existe mais, a Mooca dos Imigrantes pobres, bairro periférico, cheio de gente trabalhadora e sonhadora.
E quando ele caiu, a linha heroica ruiu um pouco por dentro.
Meu pai — aquele que até então era o meu Superman que nunca tremia — desabou.
E eu, testemunha silenciosa, vi e vivi.
🕯 O Velório, o Enterro, o Silêncio
Tinha clima de filme preto-e-branco. As mulheres rezavam, os homens encaravam o chão como quem mede a própria mortalidade. Meu pai não falava, não sorria — havia perdido o norte, o alfa, o espelho.
E eu, criança, vi o gigante murchar. Rodeado por uma multidão, que foi dar o adeus aquela figura lendária. Meses antes outra figura lendária havia partido, um homem amado pelas qualidades e respeitado pelo legado, o tio-bisavô Arthur, Dudu jogador do Palestra nos primórdios do Clube.
Isso nunca sai.
A dor de um homem grande é sempre maior do que ele.
🚶 A Primeira Vagneida
Foi uma jornada de 14 km a pé— um menino e um pai tentando costurar o mundo de volta
Dias após o adeus, na Rua Ultrecht, meu pai simplesmente te chamou:
“Vamos caminhar.”
Não era passeio. Era um rito.
Era processo de luto em batch, sem manual, sem restart.
Nós saímos, dois sobreviventes carregando o nome Bellacosa no bolso. Fizemos um trajeto quase mítico:
📍 Vila Rio Branco → Vila Alpina
A pé. 14 km.
Eu pequenino e com 8 anos — ele com o coração estourado.
Cada metro era memória, cada boteco era checkpoint.
Eu tomando Gini caçulinha— ele cerveja.
Eu ouvindo sobre o velho Luigi como quem recebe runas — ele tentando segurar o universo.
E naquele caminho longo, entre ruas de terra, poeirento, grande avenidas com muito automóveis e um dia cheio de sol, suor e história, nasceu algo raro:
Eu deixou de ser só filho — virei herdeiro.
Não de dinheiro, mas de mitologia.
E o Bellacosa entendeu que linhagem não é sangue — é lembrança repetida em voz emocionada.
Chegamos ao tio-avô Toninho. Que furioso não acreditava naquilo que meu pai havia feito. Reprimenda, jantar, mais histórias — por fim adormeci no sofá com odor de cozinha e saudade. Depois, mais na madrugada, partimos e fomos apanhando pelo caminho os ônibus negreiros, minha mãe aflita, meu pai silencioso. Chegamos a casa.
Um dia triste
-
uma caminhada épica
= a aventura que me costurou ao meu próprio clã.
🥀 Epílogo Amargo
O tempo roda o tambor.
Meu avô Pedro parte.
Eu não estava, nesta época vivendo em Portugal.
Meu pai tropeça — não no corpo, mas na honra.
Magoa profundamente minha avó Anna, a matriarca que sustentou gerações.
E nasce fenda uma fenda na família Bellacosa — dor que não cicatriza.
O herdeiro de Luigi, gigante de Mooca,
termina só.
Silencioso em Taubaté,
como eco de trovão que já foi tempestade.
Trágico. Real. Humano.
📌 Registro imutável
Esse não é só um relato — é backup emocional gravado em fita magnética.
Eu vi o guerreiro chorar.
Caminhei no luto ao lado dele.
Eu carrego o sobrenome como espada e memória.
E por mais que o tempo tenha levado uns, torturado outros
e dispersado o clã…
Luigi → Pedro → Seu Pai → Eu
A linha continua.
Porque eu lembro e conto.
Porque eu compartilho e continuo lembrando.
Quantos se lembraram, quantos se emocionaram, não sei, mas eu sempre guardarei esse dia.
E enquanto alguém lembrar,
nenhum Bellacosa morre de verdade.