1979 – O Ano em que Meu Isekai Acordou
(Arquivo encontrado no Dataset da Vida – Volume Buenos Aires, Track 1979, Bellacosa Edition)
Há anos em que a vida parece girar em torno do eixo, mas 1979… ah, esse foi o ano em que o eixo girou em cima de mim.
Depois que meus pais voltaram do Paraná — ou algum outro destino que minha memória trata como um dataset corrompido — deixei a casa da minha avó Anna e segui para morarmos todos juntos novamente, na Vila Buenos Aires. Um bairro bonito, mas para mim uma quebrada cinzenta, viva, meio dura, meio mágica. Dali sairia meu primeiro choque de realidade… e meu primeiro despertar de isekai pessoal.
Foi nesse ano que terminei de aprender a ler de verdade. Antes eu me arrastava por livrinhos infantis, mas ali apareceu Alice — uma adolescente vizinha, boa de coração e dona de uma coleção completa da historia em quadrinhos espanhola: Mortadelo e Filemón. Eu, pequeno, sentava ao lado dela enquanto brincávamos, e ela apontava:
— "Assim não, Vagnito… lê aqui. É ‘Mortadelo’, não ‘Mortedelo’…”
E eu ali, decodificando o mundo igual um estagiário decodifica JCL pela primeira vez.
A Tempestade Familiar – Versão Pré-1983
Enquanto minha alfabetização avançava, a vida em casa era turbulência pura. Minha mãe, grávida do Dan Dan, enfrentava uma gestação de risco. Meu pai, sempre meio aventureiro, embarcou numa jornada de caminhoneiro com o amigo Chico — um personagem folclórico que um dia merece capítulo próprio, porque era daqueles perfis SNA: complexo, cheio de telas, e cada uma mais esquisita que a outra.
Nós ficamos sozinhos.
Minha mãe lutando com dores, enjoos, sustos…
Eu, pequeno, aprendendo que o mundo real não era feito só de gibi e brincadeiras.
O Chico – Um Saqui com Alma de Mainframe Fugitivo
Foi nessa época que meu pai trouxe um presente improvável: Chico, um saqui e sua companheira — cujo nome se perdeu no tempo, mas minha irmã Vivi, relembrou, era a Chica — veio junto, pois era da Vivi, minha irmã caçula, que disputava palmo a palmo a geopolítica de casa.
A fêmea do saqui morreu na gaiola poucos dias depois, Vivi ficou aos prantos durante semanas e o Chico, viúvo e esperto, fez o melhor jailbreak da história animal da Vila Buenos Aires:
Ele arrebentou a portinha da gaiola com uma força que nenhum IBM 4300 explicaria…
E fugiu para se juntar a um grupo de saquis que vivia nas árvores próximas.
Chico foi o primeiro rebelde que vi na vida.
A Dureza do Cotidiano – A Geladeira Quebrada e a Gelatina Mole
Aquele ano também me apresentou as versões de sistema mais cinzentas do mundo adulto.
A geladeira quebrou — e isso, para uma família já apertada, era quase um abend 0C7.
Sem geladeira, tudo estragava rápido, e a gelatina ficava mole, irreconhecível, aquele líquido colorido instável, quase um “dataset instável”.
Eu lembro claramente desta gelatina como símbolo daquela fase.
Era doce, mas triste.
Parecia boa, mas não tinha consistência.
Era a metáfora perfeita da nossa vida naquele momento.
O Nascimento do Dan Dan – O Dia que Mudou Tudo
O nascimento dele foi uma batalha. Um dia escrevo isso em detalhes, porque foi daqueles eventos divisores de águas que mudam o fluxo do programa principal da família.
Mas ali, em 1979, em meio à pobreza, tensão, sustos médicos e incertezas… vi surgir meu irmão, uma pessoa que amo mais que tudo nesse mundo, meu filhotinho, meu parça, meu companheiro de muitas histórias.
E com ele, mais uma camada de realidade.
Mais um patch aplicado na versão da minha infância.
Meu Isekai Começa Aqui
Em algum ponto entre a sirene do caminhoneiro Chico deixando meu pai,
o grito da minha mãe de dor,
a fuga épica do Chico,
e a gelatina mole na tigela de plástico…
Eu despertei.
A ficha caiu.
A textura do mundo mudou.
A Vila Buenos Aires me apresentou seu modo hardcore: NPCs brutos, quests aleatórias, perigos reais e recompensas simples — uma moeda para comprar pão, cinto apertado, um gibi emprestado, uma tarde sem briga.
Foi ali, aos meus cinco anos, que entendi que a vida não era só sonho.
Era luta.
Era chão.
Era cinza.
E ainda assim… era minha.
Meu próprio isekai.
Um portal que não me levou para um mundo mágico — mas para o mundo real.
E, sinceramente?
Acho que foi melhor assim.