URUPÊS — AQUELE LUGAR ONDE O MUNDO ABRIA OS BRAÇOS
Se Ibitinga foi meu laboratório de aventuras, Urupês foi meu estaleiro de horizontes — aquela fase da vida em que o menino paulistano, criado entre filmes, fotos, câmeras e luzes, descobria que existia um mundo inteiro além da cinzenta e opressora capital paulista.
O caminho até Urupês já era um acontecimento. Estradas vazias, quase hipnotizantes, com apenas o ronco do fusquinha vermelho (aquele guerreiro 1960 que enfrentava cascalho, poeira, barro e buracos como se fosse um tanque de guerra miniaturizado). As cidades dormiam ao redor da estrada. Só o vento, o sol e algum caminhoneiro perdido sabiam que vocês passavam por ali.
E ali, naquele pequeno ponto no mapa do Noroeste paulista, ficavam os parentes espanhóis espalhados, meio raiz, meio lenda, sempre com a oficina de tratores como um farol, uma fazenda ou uma história para contar.
Tinha o primo Eduardo da oficina de tratores, tinha o velho Wilson, meu pai, naquela época moço na casa dos trinta anos, uma figura única, boa praça, carismático, sarrista, centro das atenções onde estivesse, um contador de causos, de piadas e de vergonhas alheias — inclusive aquela famosa e indecente do vereador e o galinheiro, que você jura que um dia vai contar.
Mas o que pega na memória mesmo não é o povo — é o ambiente.
Urupês tinha cheiro.
Cheiro de lenha queimada no fogão, cheiro de terra molhada depois da chuva, cheiro de curral, de capim amassado pelo cascos dos bois.
Urupês tinha sons.
O bater da chuva no telhado sem forro.
O rangido dos móveis antigos.
O canto enlouquecido das maritacas.
O mugir manso do gado.
E o coro dos grilos ao entardecer, aquele som que parecia dizer:
— Fica mais, menino. Você não precisa ir embora tão cedo.
Urupês tinha perigos.
Perigos verdadeiros, naturais, selvagens, como a galinha choca possuída pelo demônio que me perseguiu quintal adentro, defendendo o pintainho que achei que podia pegar como quem pega um brinquedo.
Ali você aprendi rápido o conceito de “instinto maternal”, “risco de vida” e “corre senão ela te acerta”.
Urupês tinha magia.
Calhambeques semi-abandonados que se tornavam naves espaciais.
Café colhido na hora, seco no rancho, torrado e moido.
Riachos que viravam mundos.
Ninhos de joão-de-barro que pareciam pequenas cidades.
Tucanos, maritacas e papagaios que faziam mais barulho que o trânsito de São Paulo.
Cavalos que pareciam saídos de livros de aventura.
E o mais importante:
Urupês te deu dimensão.
Me fez perceber que meu mundo era muito maior que o quarteirão cinzento da cidade grande.
Que existia um mundo imenso além da Vila Rio Branco na Ponte Rasa.
Que fronteiras não eram paredes.
Que horizontes eram convites.
Talvez tenha sido ali — entre poeira, galinha furiosa, cheiro de lenha e viagens intermináveis — que nasceu a minha vocação de não aceitar limites.
De ser alguém sempre em movimento, buscando, aprendendo, explorando, criando.
Um menino que viu o mundo se abrir em quilômetros antes de se abrir em mãos.
E Urupês, assim como Ibitinga, ficou marcado no meu peito como essas memórias que aquecem em dia frio e lembram:
— Sim, eu vim daqui. Eu me fiz aqui. E tudo isso ainda vive em mim.


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