Sobre Homens comuns e seu impacto na vida de um garoto
O HERÓI ORIGINAL DA LINHAGEM BEL LACOSA (E A PERDA DO REFERENCIAL AOS 12)**
Por El Jefe – Bellacosa Mainframe Midnight
Há sempre um momento na vida em que alguém nos serve de bússola.
Quando criança, o mundo é uma constelação simples: pai, mãe, casa, ruas pequenas e a imensidão das histórias contadas na mesa de jantar. Era assim comigo até meus doze anos — quando o divórcio dos meus pais rompeu um eixo silencioso dentro de mim. Perdi o norte. Perdi a figura de referência. E, órfão daquele modelo masculino tão meu, acabei fugindo para um refúgio que muitos meninos daquela era também conheceram: os heróis de fantasia.
Livros, gibis da Abril, filmes da Sessão da Tarde, cavaleiros, samurais, bárbaros, jedis, mutantes, super-sentais e todo tipo de guerreiro improvável passaram a ocupar o espaço que antes era do meu pai.
Mas antes da fantasia, antes da ficção me adotar, existia algo infinitamente mais poderoso:
as histórias que meu pai contava do herói dele — meu bisavô Luigi.
E ali estava o mito fundador da linhagem Bellacosa.
O GIGANTE DE ATIBAIA – O PRIMEIRO “AVATAR” DA FAMÍLIA
Luigi era um gigante de quase dois metros,
olhos azuis de cortar o vento
e aquela força bruta dos napolitanos da velha guarda, que atravessaram o Atlântico sem medo e sem garantia.
Meu pai contava essas histórias com brilho nos olhos e voz cheia, como quem recita epopeia homérica na laje de casa.
E eu, garoto, achava aquilo tudo a coisa mais épica do mundo.
— “Seu bisavô tinha um sítio em Atibaia…”
— “Caçava no mato com a coragem de dez homens…”
— “Virou jogador do Juventus nos anos 20…”
— “Foi meter o nariz na política…”
— “Trabalhou como adjunto de delegado…”
— “Resolviiia tudo no braço, era encrenqueiro, mas justo…”
Era meu primeiro super-herói.
O Batman da Mooca.
O Conan da Quarta Parada.
O Aquiles que tomava Antártica no boteco enquanto olhava de rabo de olho o Palestra Itália — afinal, o irmão era um dos astros.
E eu ria ao imaginar aquele homem enorme, turrão, misturando português e italiano porque simplesmente se recusava a deixar que lhe proibissem sua língua durante a Segunda Guerra. A repressão policial não o dobrava — apenas o irritava.
Já que falei de irritar, isso é outra lenda de família, a bocas miúdas, quase que segredo marcial. Contavam que ele odiava homens que batesse na esposa, consta que na época de sub-delegado. As mulheres iam à delegacia dar queixa de violência domestica. Na madrugada, ele pegava a viatura, como um bom capo chamava uns dois ou três auxiliares, tutti buona genti. Dirigia até a casa do dito cujo, enfiava na viatura, levava num campinho de futebol, la para os lados dos baldios de Sapopemba, dava um belo enxerto de porrada e mandava o individuo tomar jeito, senão aconteceria novamente. Segundo a lenda, muitos que passaram por esse corretivo tomaram jeito na vida, afinal saco na cabeça e porrada no ermo na época eram bons corretivos. Era fácil, muito fácil, para um menino de oito, nove, dez anos, olhar para tudo isso e pensar:
“um dia quero ser como esse herói que meu pai tanto admira.”
A MO(O)CA E SUAS FRONTEIRAS MÍTICAS
As histórias sempre tinham um cenário forte:
a Mooca.
A zona italiana.
Aquele caldeirão de imigrantes onde o sotaque vale mais que RG.
Meu pai descrevia a Mooca antiga com quase a mesma reverência que falava do Luigi:
— espanhol cruzava a rua errada, dava briga;
— polonês pisava na zona dos italianos, confusão;
— português cochichava alto demais, pronto, já tinha discussão.
E dentro desse tabuleiro humano, Luigi reinava.
O “carcamano encrenqueiro”, como alguns chamavam — uns amavam, outros odiavam, mas todos respeitavam.
Porque havia homens que eram rocha.
Luigi era um monolito.
E ali estavam as raízes da família Bellacosa fincadas no cimento quente da Mooca.
O DIA EM QUE PERDI O NORTE
Mas então veio o divórcio.
E o menino que queria ser Luigi ficou sem mapa, sem bússola e sem narrativa.
É curioso como o ser humano sempre precisa de um modelo para sobrepor, igualar ou contrariar.
Quando o meu sumiu, entrei no mundo dos heróis de fantasia para tentar preencher aquele vácuo.
E talvez por isso eu tenha enxergado tanto encanto nos personagens que lutam contra o destino, que erram, que quebram, que se levantam, que treinam com espadas imaginárias ou enfrentam monstros mitológicos — porque de alguma forma eles eram ecos do Luigi que meu pai contava.
O HERÓI É A HISTÓRIA QUE SOBREVIVE
Hoje, adulto, percebo uma coisa linda:
Eu não conheci o Luigi pessoalmente no auge.
Mas conheci o olhar do meu pai ao falar dele.
E isso, meu amigo, vale mais que qualquer fotografia antiga.
É nas histórias que sobrevivemos.
É nas memórias que encontramos a bússola perdida.
E é no passado — o nosso passado — que os heróis continuam vivos, gigantes e risonhos, prontos para mais uma briga na Mooca.
A linhagem Bellacosa não nasceu grande — nasceu épica.
E continua assim cada vez que alguém conta, reconta e reaviva esses capítulos.